domingo, 4 de julho de 2010

Para o Último Poeta Xamânico

Estávamos falando sobre o Roberto Piva naquele sábado. Entre mim e o sr. Januário a banca de livros de José Puebla, livreiro a quem conheço a longa data - um dos meus professores quando comecei no ofício, há mais de vinte anos. Vou à Praça Benedito Calixto visitá-lo, e a seus amigos e os ótimos bate papos regados à cerveja gelada e conhaque quente para curar um pouco às saudades deste período tão rico de minha vida: a gravidade crua do contato direto com as pessoas, a mística própria que os livros possuem dispostos ao ar livre, a sempre inesperada aparição ou encontro com algo ou alguém calibrado de esquisitices ou maravilhas. E bons livreiros, quando se encontram, geram grandes conversas, por vezes rudes de uma indigência saudável, às vezes bitoladas no business, mas quase sempre minadas para a risada e a sobriedade típicos de uma raça em extinção assistindo a desintregação anunciada e nem por isso percebida da vida inteligente no planeta. Assim, em terreno alheio, era visita e visitado, e falávamos sobre o Piva, a edição do Paranóia sobre a banca, a decepção por vermos os abutres se aproximando e anunciando as esmolas necessárias desta má consciencia babaca: vamos arrecadar fundos para o Poeta, vamos fazer eventos para mostrarmos a importancia. Na verdade, o que foi pertinente na nossa conversa foi pensar esta idéia de importância. A quem interessa? A necromancia é a arte de se roubar e incorporar a si a força dos mortos.Acredito na seriedade do Sr. Januário, até mesmo a maneira com que se ausenta destas questões mostra uma dignidade louvável e facilmente atacável para os que preferem as vitrines da desgraça alheia. Bem mais tarde estava na Roosevel com outro livreiro, o Bactéria, a geladeira fornida de cervejas e prontos para nossas conversas de fim de sábado. Pegos de supetão pelo aviso da morte do Poeta decidimos ir ao velório no Cemitério do Araça. Subimos com as cervejas, bebendo para dar ao baque da notícia seu devido estatus de idiotia. Nestas horas é bom admitirmos a própria impotência e idiotice, principalmente por já, há algum tempo, sabermos que isto não demoraria muito a acontecer. Digo mais uma vez: Roberto Piva era um Poeta Xamânico, encarnação de forças que nenhum outro homem poderia operar na Arte sem sacrificar o próprio corpo e toda a geografia de uma cidade que nós, seus leitores, aprendemos a ver também a um certo custo, esta cidade...como repetia tão ém Januário na minha caixa postal. Ao morrer o Poeta apenas mostrou o quanto a coragem, a atitude mental, a postura militante tão doce e agressiva constrói por meio do poder da palavra a pedagogia do transitar pela finitude com talento e graça. O homem cremado hoje levou tudo com ele. O desaparecimento de seu corpo, a fatura de carne pele sangue e ossos que decidiu eliminar como último insulto Ao Grande Medo que nunca, nunca deixou de acusar. E vimos os vivos até o quanto pôde-se suportasr vê-los, aos poetas e escritores, aos familiares e aos amigos. Peço humildemente que alguém se lembre de cantar e dançarno sétimo dia, que ergam o que quiserem brindar, seja folha flor ou agua, que oferendem ao menos a alegria e a força e a coragem de sua presença encarnada, sua compaixão feita carne. Que viva Piva!

quarta-feira, 22 de julho de 2009

EU, LIVREIRO.

5.
Morávamos do quarto de empregada, minha mãe e eu, mas o apartamento era um duplex na cobertura em um dos melhores bairros da cidade, Ele,o patrão da minha mãe, era um arquiteto e empresário do ramo do comércio de plásticos.Quando chegava do escritório ia direto para a sala ampla onde eu,já devidamente treinado, levava o seu whisky. Ele tinha uma aparelho de som estúpido de grande numa parede a poucos metros da lareira. Sem brincadeira, tinha uma lareira. às vezes ele caía numa melancolia monomaníaca, ficava quieto bebericando o negócio dele e ouvindo a mesma coisa...ele podia ficar uma semana inteira nesse ritual ouvindo o mesmo vinil, quase sempre uma sinfonia ou uma sonata. Foram as várias vezes que Rhapsody in Blue tocou naquele aparelho , a forma como aquela música entrava pela casa inteira e parecia estourar para fora e se derramar andares abaixo até explodir ao céu o que despertou meu interesse pela música clássica. Desde sempre esta música paria inteligência e uma certa ausência de gravidade onde eu a ouvia. Convenci o Jorge colocar música clássica no sebo um tempo. No fundo gostou da idéia, a contragosto porque não tinha paciência, mas como comerciante observava seus clientes sorrirem para ele e elogiarem o gosto da casa. Ele me olhava como que pego numa armadilha, aí tirava da rádio mas no dia seguinte colocava de novo, sempre no horário do almoço.
As pessoas levavam os livros até o sebo para trocar ou vender e quando a quantidade era grande vinham de carro e o Jorge negociava a compra lá fora mesmo, quase sempre fechava a compra só dispensando os semanários de notícias ou as tranqueiras em mal estado. Bem no começo, quando eses livros davam entrada eu já caía em cima para separar o que queria mas ele me chutava logo dali e mandava fazer outra coisa longe. ele me deixava levar uma coisa ou outra, mas nem sempre, às vezes simplesmente dizia não. Eu vivia levando livros para casa mas não conseguia ler tudo que pegava apesar de dar boas duas ou três horas diárias só para ler, e com o tempo fui me dando conta de que estava montando uma micro livraria....

domingo, 25 de maio de 2008

Eu, livreiro

4.
Os meses que se seguiram foram difíceis tanto onde eu morava com minha mãe, na casa de família, quanto na escola, onde eu ía muito mal nas matérias exatas e precisava me esforçar muito para entender aquela maldição de números e equações. Minha relação com minha mãe era a pior possível naquela época. Não nos entendíamos de jeito nenhum e toda a situação, de morar numa casa que não era sua, de conviver com pessoas que não eram sua família, a concretude mesmo da relação entre classes iludida por todo um bem estar ao redor forjado como ambiente, tudo isto me deixava confuso. Os livros foram meu primeiro e principal aliado na arte do desaparecimento. Ler era a experiência da invisibilidade e a medida que fui avançando fui me tornando cada vez mais perigoso para mim mesmo. Meu primeiro emprego então, no sebo do Jorge, foi um banho de água fria nas minhas fantasias mais estranhas naquela idade, e ao mesmo tempo foi uma âncora de ar puro, de possibilidade mesmo de alguma coisa acontecer fora do circuito apertado em que estava. Porque o baiano era um escroto de pedigree, dinâmico e muito claro quanto ao espaço que o cercava, nem sempre seguro por não ter mais do que algumas informações básicas sobre os livros, mas não estúpido a ponto de não cativar quem quisesse e não ganhar seu dinheiro em paz. O que aprendi foi que o trabalho com livros era uma urgência em sempre ganhar dinheiro e aprender cada vez mais ouvindo .
__ Quase sempre é questão de ouvir, ouvir o que querem, o que sabem, e mais aínda o que pensam que sabem. Nem sempre é legal ficar aqui fazendo as coisa e ficar ouvindo papo furado, mas é bom pegar o que ouviu e jogar prá frente e ver no que dá. Aprende a conversar.
Ele lia lá suas coisas, é verdade. Krishnamurti, Rajneesh(mais tarde Osho) e outros gurus. Não lia romances, não gostava de poesia, de filosofia queria distância e de História só uma biografia e outra. Com os anos entendi que em matéria de leituras meu Mestre era como a grande maioria dos leitores. Mas o que aprendi com ele foi um dos princípios básicos que fazem de uma pessoa que trabalha com livros ser um livreiro sem ter de ser necessáriamente um intelectual, ele sabia conduzir uma pessoa numa conversa ao ponto de aprender sempre alguma informação nova. Dentro dessa simplicidade ele, um simples comerciante, aprendia a ler os livros mais difíceis, os volumes mais escabrosos poderiam ser comentados para outras pessoas com eficácia, tudo para vender, um comerciante livreiro. Minha primeira grande lição foi ser um comerciante e isso foi um desafio e tanto para um moleque que começava a achar que alguma coisa estava muito errada no mundo. Isso sem falar de mim mesmo.

quarta-feira, 14 de maio de 2008

EU, LIVREIRO

3.

O sebo era pequeno e caóticamente simpático. Os livros que não coubessem nas estantes ficavam empilhados esperando sua vez de serem garimpados pelos ratos frequëntadores, malucos discretos e vez e outra bem interessantes, por livreiros da U.S.P., na maioria uns chacais neuróticos, alguns bons conversadores com aquela arrogância bem dosada entre o intelectual e o picareta. Eu trabalhava no período da tarde limpando os livros e dando um jeito de manter as entantes sempre cheias para conhecer o estoque. Jorge não gostava de procurar livros caso não lembrase se tinha ou não, e mais de uma vez me dise para não perder tempo procurando nada para ninguém por mais de três minutos. Ele anotava os pedidos mas só se dava ao trabalho de avisar caso o cliente fose mulher gostosa ou burguesão com grana. Quando algum lote de Humanas entrava ele ligava para alguns livreiros e iam algumas figuras folclóricas fazer negócio. Jorge procurava mantê-los falando, anotando mentalmente o que compravam, atento ao que deixavam de lado no último instante.
__ Aí, xarope, quando um desses caras entrarem e eu não tiver abrem bem o olho que é tudo filho-da-puta.
Entre uma lição e outra, quase sempre manha de vendedor, faro prá ladrão, jeito de sacar os espertinhos, dava sempre um jeito de me esculhambar, principalmente quendo eu tentava botar banca de grande leitor
__ Ah vai melar cueca e cala essa boca.
Apesar disso alguns clientes saía satisfeitos dando graças, e Sua Baianidade sorria e me dava dicas de sua psicologia.
__ Thomas Mann é grosso mas é o Sidney Sheldon que paga o almoço.
Se eu tivese escutado este conselho do Mestre estaría agora numa praia bacana vendendo birita prá turista no meu quiosque cheio de mulher. Ese era o sonho dele. O meu era me livrar das espinhas.

segunda-feira, 12 de maio de 2008

EU, LIVREIRO

2.
Como isso começou? Eu chegava da escola, guardava minhas coisas e descia pela escada de serviço, do último ao primeiro andar, vinte andares revirando o lixo. Encontrava coisas, mas procurava livros e revistas. Sei de um garoto
to do prédio me falando de um sebo ali perto . Foi a primeira vez que ouvi falar nisso, eu tinha onze anos e a idéia de trocar os livros e ganhar uns trocos me alegrou muito , não queria saber de trabalho, a escola já me infernizava a vida bem mais do que munha mãe era capaz de piorar. O ilustre filho da empregada não queria ser peão, eu queria mesmo era ficar lendo gibis e livros de aventuras legais e escrever e inventar coisas parecidas com o que lia, novos sistemas solares, viagens no tempo e etc. Então me veio esse cara um dia e me falou do sebo. Fiz que me levasse até lá e em pouco tempo consegui emprego. O patrão da minha mãe tinha uma coleção Tesouro da Juventude que eu não cansava de folhear, e por ser antiga achava um barato a distância da Terra para os outros planetas, que naquela edição eram seis, mais a Lua e o Sol,ser calculada pelo número de horas-vôo de aviões quatrimotores. O dono do sebo era um baiano barrigudo risonho e esporrento chamado Jorge, sempre com a esponjinha limpando as capas sujas dos lotes que chegavam , tirador de sarro e sempre botando prá fora da loja quem lhe enchia o saco. Meu primeiro mestre ( ele me colocou prá fora uma dúzia de vezes) tinha uma coleção Tesouro da Juventude também, no alto das prateleiras junto com as Barsas e Miradores, que na época valiam bem, mas só pentelhando muito ele subiu na escada e pegou o primeiro volume e me deixou ver. Eu me acostumara já a levar o que encontrava nas lixeiras para trocar ou pegar uma mixaria e olhava tudo o que ele tinha na loja muito curioso. A coleção me chamou atenção por ser diferente da que eu conhecia , a encadernação era escura e parecia ser mais antigona. Quando abri o primeiro volume fiquei louco: a distância da Terra para os outros planetas, cinco mais a Lua eo Sol era medida por dias de viagem de locomotiva.
__ Trabalho um mês de graça pela coleção.
__ Feito, se pisar na bola é pé na bunda.
É, foi assim que começou.

domingo, 11 de maio de 2008

Eu, Livreiro.

No último sábado resolvi ir ver a pré-estréia de Control e como saíndo da Passagem tería algumas horas livres andei por estes quarteirões entre a Consolação e a Augusta. Fazia já um bom tempo que não andava por ali com o mesmo tédio da época em que trabalhava ao lado do Espaço Unibanco, digo tédio por falta de definição - o veteranismo não desperta nada- desaprendi a carregar os lugares comigo mas admito que aínda vejo aqueles anos na Interzona, o território bizarro e desaparecido entre a Luís Coelho e a Antônio Carlos marcou meus músculos e o jeito com que o coração bombeou sangue para o cérebro com o senso de que a queda enquanto servi como livreiro ali sería o desastre porque conhecendo o que a rua é capaz, da pressão demoníaca que exerce para baixo detalhando a visão desprezada da loucura urbana, os acordos de convivência mantidos com aproximações e afastamentos muito rápidos para os civis sequer imaginarem a feudalização em camadas do lema : tudo é permitido. Vivi cinco ou seis anos trabalhando antes o significado do que fazia do que pagar contas e inspirar oxigênio e expirar gáz carbônico, o que fiz cumprindo à custo os Upanishades e a santa Torá naquela mistura de passarela de Almodóvar e o sofisticado Mondo Cane - pelo menos enquanto Lazlo era vivo e o Sarajevo um lugar honesto para os otários se foderem em paz. Quando cheguei já tinha a carga da rua,já sabia ha muito tempo o que devería ser evitado e o que podería ser aproveitado, que mãos apertar, a quem afastar e para onde fugir. Para um livreiro a rua é um inferno, a escola de tudo o que precisa aprender para não enlouquecer, e se for reprovado tranforma mesa de boteco em escritório só esperando o conhaque grátis, o fumo fácil e a noite, a noite. É, e mesmo cuidando para não cair a Augusta foi uma pós-graduação. Foi a região da loucura.

sexta-feira, 9 de maio de 2008

CABARET NEOPATÉTICO

Agora o mapa do meu corpo põe à disposição de cada orgão sua própria saída da zona desmilitarizada entre os eus e os eles e guiam como lâminas de fôrça cortando a pele por dentro até a boca calando esse ar louco-por-poder e louco-por-controle circulando viciado por toda parte.
Respirando o retorno de cada parte evitada, tomando o rejeitado de volta porque aquele golpe de estado fóbico quer a Roda sob controle e basta um momento de fraqueza.
Sou o escorpião que aprendeu a nadar: dei ao corpo a chave do sistema fechado e tudo dentro da minha carne, cada pedaço, cada fragmento asume outro lugar, ministros da conspiração derrubando o que já está morto.
Procuro o caminho da Revisão e encontroa retomada do Trabalho, e é preciso ter confiança e olho certo, mãos rápidas e silêncio para buscar em mim mesmo o que me foi tirado. Sou minha espectatica, meu romance, a cabeça segue a dança dos meus cigarros até a fumaça perfumar o sangue e eu, enfim, perceber assustado o vermelho me caíndo bem.